A Pacificação do Complexo do Alemão Deu Certo?
Esta reportagem foi originalmente publicada na VICE Brasil em 30/11/2015 e posteriormente contemplada com o V Prêmio Latino-americano Sobre Drogas oferecido pela CONFEDROGAS 2016.
Em 2015, cinco anos depois da ocupação, tiroteios e mortes são constantes no Complexo e em outras favelas contempladas pelo programa de pacificação do governo do Rio de Janeiro.
Localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro, o Complexo do Alemão abrange os seguintes bairros: Penha, Olaria, Ramos, Bonsucesso e Inhaúma. Ele também é formado por um conjunto de 12 favelas: Morro da Baiana, Morro do Alemão, Alvorada, Matinha, Morro dos Mineiros, Nova Brasília, Pedra do Sapo, Palmeiras, Fazendinha, Grota, Vila Cruzeiro e Morro do Adeus. Segundo um artigo do cientista social Bruno Coutinho de S. Oliveira, até os anos 40, as terras do “alemão” (como era conhecido o proprietário original, na verdade um imigrante polonês) formavam uma grande fazenda, com cerca de três quilômetros quadrados. A partir desse período, algumas indústrias começaram a se instalar na região, como a Cortume Carioca, na Penha, que, nos anos 50, chegou a ser a maior indústria de curtição e fabricação de produtos de couro das Américas e a segunda do mundo, empregando cerca de 3 mil pessoas. Aos poucos, a área foi sendo desmembrada e vendida em lotes, tendo como compradores os próprios trabalhadores das indústrias que se instalaram por ali. Contribuindo para o grande fluxo migratório na região, a abertura da Avenida Brasil, em 1946, levou mais indústrias para a região, fazendo com que, até os anos de 1980, esses bairros se apresentassem como o principal polo industrial da cidade.
Uma sucessão de crises econômicas gerou o fechamento de várias fábricas, gerando um ciclo de aumento no desemprego e na criminalidade da região; assim, como consequência, mais fábricas fecharam as portas. Estima-se que esses fechamentos tenham dado fim a cerca de 20 mil postos de trabalho. Segundo dados do IBGE, o complexo possui IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) de 0,709, ficando em último lugar no ranking do IDH das 32 Regiões Administrativas do município do Rio de Janeiro. Outro dado apontado no artigo de Oliveira afirma que a média da renda por capita no Complexo do Alemão é de apenas R$ 177,31.
No decorrer dos anos 90 e 2000, o complexo ganhou notoriedade por ser considerado o quartel-general da maior facção criminosa do Rio de Janeiro: o Comando Vermelho. Com exceção do Morro do Adeus, controlado pelo TCP, o tráfico de drogas de todas as demais comunidades do Complexo do Alemão é controlado até hoje pelo CV. Em 2007, às vésperas dos Jogos Pan-Americanos, uma operação da Polícia Militar, com auxílio da Força Nacional, deixou pelo menos 19 mortos na região. No ano seguinte, o relatório anual da ONU para Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extrajudiciais se debruçou sobre o massacre, apontando que “autoridades do governo do Estado declaram ser esta operação um modelo para as ações futuras da polícia” e que, “De fato, parece ter se tornado um modelo de ação: em 30 de janeiro de 2008, 6 pessoas foram assassinadas pela polícia em uma grande operação; em 3 de abril, 11 foram mortas; e, em 15 de abril, mais 14 assassinatos. Após a última operação, um alto oficial da polícia comparou as pessoas mortas a insetos, referindo-se à polícia como ‘o melhor inseticida social’“.
De fato, a política de extermínio não cessou – só aumentou. Os grandes eventos Copa do Mundo e Olimpíadas passaram a ser usados como desculpa para a implementação das Unidades de Polícia Pacificadora. A primeira UPP começou a funcionar em 19 de dezembro de 2008, no Morro Santa Marta, no bairro de Botafogo, na Zona Sul. Segundo o site da PMERJ, desde então, 38 UPPs já estão implantadas e atualmente a Polícia Pacificadora conta com um efetivo de 9.543 policiais. Diferente das favelas localizadas na Zona Sul, como Santa Marta e Rocinha, onde a ocupação deu-se sem troca de tiros, o processo, nos complexos do Alemão e da Maré, foi realizado em parceria com as Forças Armadas, resultando em muitas mortes. No Alemão, a ocupação aconteceu em novembro de 2010 e contou com uma tropa de 2,7 mil homens, sendo 1,2 mil policiais militares, 400 policiais civis, 300 policiais federais e 800 militares do Exército. No primeiro dia, a ação policial foi transmitida ao vivo por helicópteros da Globo, mostrando cenas impressionantes de um pequeno exército de traficantes em fuga na mata sendo alvejados por helicópteros da polícia. Após a ocupação, deu-se início às obras do PAC: a mais notória delas, a construção de uma rede de teleféricos acompanhados de bases da UPP em locais estratégicos. Ainda assim, cinco anos depois da ocupação, tiroteios continuam ocorrendo diariamente no Complexo do Alemão, trazendo a óbito não só policiais e traficantes como muitos inocentes.
O Papo Reto dos moradores do Complexo do Alemão
Durante este ano, visitei o Complexo do Alemão várias vezes, em sua maioria para visitar o pessoal do Coletivo Papo Reto. Acho que não precisa ser do Rio para entender que o nome significa que essa galera vai diretamente ao assunto, sem enrolação, papas na língua ou rabo preso. O coletivo reúne jovens que já atuavam como comunicadores e ativistas independentes antes de somarem forças no final de 2013 para auxiliar as vítimas de deslizamentos causados por uma forte chuva. Desde então, o grupo passa a atuar em duas vertentes: a comunicação de guerrilha (na qual expõem a má atuação da segurança pública através da polícia) e a comunicação afirmativa (que busca dar visibilidade a todas as coisas, pessoas e ações positivas existentes no complexo). Graças a uma rede de WhatsApp, que conta com cerca de 70 moradores, comerciantes e mototaxistas de diversas localidades da região, eles monitoram tiroteios que são comunicados através de sua página de Facebook com 15 mil seguidores: é uma maneira de alertar os moradores para evitar as áreas, se proteger e até retirar seus carros e motos de ruas estreitas a fim de que não sejam danificados pelo Caveirão.
Na vertente de comunicação afirmativa, o coletivo produz muito conteúdo bacana, como os programas de YouTube “Tal do ao vivo” e “Retrato Falado“. Mas infelizmente o que se destaca na página do coletivo são as notícias quase diárias de tiroteios, abusos e violações dos direitos humanos. Essa atuação do Papo Reto denunciando abusos da polícia rendeu destaque na mídia internacional e uma parceria com a ONG norte-americana Witness, que, além de apoiar o coletivo com equipamento, recentemente levou três dos seus integrantes para uma série de oficinais e eventos em Nova York. Conversei com um desses integrantes, o Raull Santiago – há pouco mais de um ano, ele também trabalha como repórter no canal Globonews –, sobre como a ocupação transformou o Alemão. Segundo ele (e também a maioria das pessoas com quem conversei por lá), tanto a UPP como o teleférico nunca foram demandas dos moradores. “Cinco anos depois, ainda vivemos violência e confrontos até mais intensos e desregulares do que antes, pois são duas forças ocupando o mesmo espaço; e, quando se encontram, a qualquer hora do dia, intensos tiroteios acontecem. Os governos partidários sempre olharam para o Complexo do Alemão através da mira da arma de um fuzil da polícia: sempre foi dessa forma, antes e durante a pacificação. A polícia é, ainda hoje, o único braço do Estado partidário. Isso é vergonhoso. A polícia não pode mediar um conflito do qual ela faz parte. Vemos diversos grupos de PMs invadindo a favela, mas nem um professor, médico, psicólogo; ou seja, essa política é, na verdade, uma contenção da camada popular dentro das suas favelas. Em nome da utopia de paz, só vejo guerras.”
Ainda segundo Raull, que não bebe nem usa entorpecentes, uma nova política de drogas, tendo em vista a descriminalização, deve ser discutida. “A presidenta, o governador, eu e você que está lendo, todos sabemos que, na favela, não tem plantação de maconha, refinaria de cocaína e muito menos fabricas de armas. Quem realmente lucra com essa guerra não está na favela, mas nós somos os ‘pobres favelados’, aqueles que a sociedade da rua aceita que morra e que fique por isso mesmo.” No decorrer da vida, Raull perdeu vários amigos de infância que entraram para o tráfico, seja para ascender financeira ou socialmente, seja simplesmente para se vingar da polícia. Ele usa uma matemática simples para expor o fracasso do programa de UPP em conter o crime. “Se, em 2015, um menino de 14 anos está armado, dando tiro nos becos da favela, em 2010, quando a pacificação começou, ele tinha 9. Então, está tudo errado nesse discurso de paz: UPP é, na verdade, paciFICÇÃO. De 2010 para cá, apenas vi guerras, violência – e nada mais.”
No último sábado, dia 28, a ocupação completou cinco anos; não houve nenhum ato oficial, mas o pessoal do Papo Reto preparou uma intervenção: eles colocaram um bolo cenográfico na entrada da Grota. Numa cerimônia rápida, enquanto soava um surdo, o bolo recebia bandeirinhas com nomes de vítimas fatais desses últimos cinco anos de ocupação, tanto de moradores quanto de policiais. Quem tocava o surdo era o líder comunitário Marquinhos da Pepé, presidente da associação dos moradores da Palmeiras, nascido e criado no Alemão. Ele me foi apresentado como um cara que havia denunciado, mais de uma vez, a tentativa de formação de milícias no complexo. Ele me explicou: “A situação do Alemão vem se complicando desde 2013, quando houve uma troca de comando. Antes, nós tínhamos policiais comprometidos com a vida e a pacificação, que queriam de verdade trazer paz para a comunidade, como Rodrigues, Salgado, o Capitão Vinicius, mas, quando houve essa mudança de comando, começamos a notar mudanças na conduta dos policiais. Hoje, se um comerciante não paga um café, se não dá um lanche, uma caixinha, se ele tem uma carga e descarga, esse veículo é multado. Hoje, se você for ver, por exemplo, próximo à Nova Brasília, os carros dos policiais ocupam todas as vagas em frente aos comércios. E o comandante Zuma disse que a lei na UPP Nova Brasília é ele: não é a primeira, nem a segunda, nem a terceira vez que ele disse hoje”.
“Ontem, estavam falando que vão implementar mais uma UPP no morro. Para que mais uma UPP no morro? Tem de implementar mais projetos sociais, e não mais polícia; hoje, no morro, existem três facções: o Comando Vermelho, a UPP e alguns policiais, que são bandidos travestidos de polícia, tentando impor uma milícia no Alemão. Os tiroteios no Alemão têm dias e horas certas, tem plantões certos em que rola tiroteio. A realidade no Alemão é essa; então, se as autoridades não olharem, o que vai acontecer é isso: vai sair o CV e entrar a milícia.”
A esperança que deveria vir pelos cabos do teleférico
Além da violência, outra reclamação constante dos moradores é a questão do teleférico. Primeiro, ele não atende às necessidades da população, que prefere utilizar o serviço das vans e dos mototaxis, ambos constantemente perseguidos e criminalizados pelas autoridades. Outra reclamação é que, mesmo o teleférico tendo custado mais de R$ 200 milhões, não houve investimento semelhante em saneamento básico ou moradia no restante da comunidade. Uma das justificativas para o milionário teleférico é a de que ele se tornaria um novo ponto turístico da cidade, fomentando a economia local; de fato, isso aconteceu no início, porém a escalada da violência reduziu drasticamente sua visitação. Os altos custos de manutenção fizeram com que a Supervia, empresa que opera o teleférico, viesse perdendo o interesse em mantê-lo funcionando. Das mais de trinta barraquinhas de artesanato e souvenir abertas na saída da estação Palmeiras (a última da linha), hoje restam apenas três. Colei lá para conversar com os donos de duas delas.
Conversei primeiro com o bem-humorado Cleber, que vende quadros pintados por sua companheira, a Mariluce, que infelizmente não estava lá. Além de vender os quadros, eles realizam oficinas de pintura para mais de 60 crianças da comunidade e fazem mutirões para pintar murais pela comunidade, apagando as pixações do tráfico. Ele também administra a página “Complexo Alemão“; com quase 30 mil curtidas, ela é usada para denunciar e protestar. Morador do Alemão há 16 anos, Cleber veio de Porto Seguro e é descendente de índios Pataxós que vendiam artesanato para sobreviver. A chegada de madeireiras e do turismo exploratório foi um dos motivos que fizeram Cleber migrar para o Rio. “Eu saí de Porto Seguro com muita raiva, pois eu vi as grandes empresas de turismo tomarem de quem eram os donos. Então, quando eu comecei a ver o turismo acontecer aqui, eu não podia deixar isso acontecer. Foi quando a gente começou a brigar para não deixar existir um turismo exploratório de grandes corporações e estimular um turismo de base local, onde o morador se apropriasse disso. O Jeep Tour que existe na Rocinha, por exemplo, é um absurdo: eu fui o primeiro a ser contra esse safári vergonhoso. Nós não deixamos, batemos de frente com isso. Hoje, são mais de trinta guias locais que levam os turistas aqui dentro da favela – e levam os turistas para consumir nos locais da favela.”
Apesar das vendas já terem tido dias melhores, Cleber se orgulha em dizer que o sustento de sua família vem dos quadros da Mariluce, que já foram vendidos para turistas de mais de 80 países, incluindo o proprietário do Cavern Club, em Liverpool, fato comprovado num caderninho que ele faz os clientes assinarem. No dia em que eu visitei Cleber, um grupo de 40 turistas de New Orleans, a maioria negros, “fez a limpa” nas barraquinhas de souvenir da estação Palmeiras. “A gente quer passar pro turista uma imagem não da violência, do tráfico e da morte, mas de uma favela que supera tudo isso. A violência, as mídias convencionais já pregam e mostram. Nós queremos mostrar pro turista um lado que não é mostrado pela mídia: de que existem artistas como, por exemplo, a Mariluce, que pinta quadros da favela se inspirando nos becos e vielas, para que o turista leve uma imagem que ele não tem, baseado num sonho que ela teve de um dia ter uma favela toda colorida, onde as pessoas vivem em harmonia, com condições de andar e soltar uma pipa. [É para o turista] poder saber que aqui tem arte também. O turismo traz divisas importantíssimas para os moradores; além da renda, todas as pessoas que aqui tiveram contato com turistas, tiveram uma imersão cultural, um conhecimento que eles não tinham antes. Diversas culturas e idiomas.” Perguntei para ele o que podia melhorar. “Dizem que sete milhões de pessoas passaram pelo teleférico nos tempos áureos. Eles estiveram aqui pelo cabo e só fizeram a volta, o passeio aéreo; se esses sete milhões de pessoas tivessem descido do teleférico, entrado na favela e gastado um real, a gente teria mudado muitas realidades aqui dentro. Muitos jovens não teriam se envolvido com o tráfico, estariam guiando esses turistas. Muitos jovens que trabalharam aqui comigo eram envolvidos; inclusive, um tinha pulseirinha na tornozeleira, trabalhou comigo guiando grupos de turista. Eles sabiam disso, ele ganhava 200, 300 reais por dia guiando aqui dentro. Mas, hoje, o teleférico é um prejuízo incalculável pro governo, e nenhum consórcio quer assumir devido ao alto índice de tiroteios diários. O número de visitantes caiu muito; então, ou o governo fecha isso aqui de vez, ou muda toda a estrutura social e política.”
Na mesma tarde, conversei com o Sergio, que vende quadrinhos e maquetes de madeira dos barracos do Alemão que ele mesmo faz. “Já trabalhei em fábrica de móveis e loja de cintos; então, desenvolvi esse artesanato.” Ele tem uma filha de 16 anos, e a recente escalada de violência o faz preocupar-se toda vez que ela sai de casa. “[O que] a gente tem observado por aqui é que pacificação mesmo não teve nada; até hoje, a gente sofre com essa guerra que eles criaram entre si. A tão sonhada pacificação que não só os moradores como visitantes esperavam não aconteceu. Existem pessoas aqui que têm parentes em outros lugares e que nunca vieram visitá-los – e agora é que eles não vêm mesmo.”
Na visita às Palmeiras, ainda tive a oportunidade de conhecer a Vilma Ribeiro, fotógrafa e integrante do Movimento de Mulheres do Alemão, conhecido como MMA. “São cinco anos de pacificação, e são cinco anos pedindo socorro: nossos governantes vieram aqui dizendo ‘Vamos colocar teleférico, vamos arrumar, etc.’, mas foi tudo muito paliativo. Porque, se você entrar nos becos, você ainda vai ver vala aberta, você ainda vai ver gente em barraquinhos de madeira. Uma obra desse tamanho aqui, e o pessoal lá dentro assim? E isso aqui? Quem é que usa esse teleférico? Muita gente sem saneamento básico, precisando de socorro; então, formamos o MMA. Uma mulher foi falando com a outra, e vimos o que era necessário para ajudar-nos. É uma luta diária porque sempre tem uma pessoa precisando de uma ajuda, uma alimentação; então, a gente tem um grupo de zap [WhatsApp] em que a gente fala ‘Quem é que pode ajudar essa família?’. Aí uma traz um quilo de feijão; a outra, de arroz, e a gente ajuda essa família. Tem um deficiente precisando de uma cadeira de rodas, aí tem uma conhecida que conhece outra que tem uma cadeira lá parada; então, esse contato via zap, via rede, facilita a gente para achar ‘quem tem’ e ‘quem precisa’.”
Execução ou Legítima defesa? O lamentável caso de Eduardo de Jesus.
No dia 2 de abril deste ano, por volta das 17h30, o menino de dez anos Eduardo de Jesus sentou-se nos degraus de uma espécie de sacadinha na frente de sua casa e brincava com um celular. Ele estava de costas e sem camisa, portando apenas o celular, da cor branca, quando um policial, que liderava um grupo que descia a escadaria ao lado da casa, abriu fogo, atingindo Eduardo na cabeça e espalhando sua massa encefálica por rua, degraus, parede e teto da sala de casa. Imediatamente, Dona Terezinha, mãe de Eduardo, saiu de dentro de casa; chocada com a cena horrorosa, ela partiu para cima do policial: “Eu falei com ele ‘Você matou meu filho, seu desgraçado’, e ele respondeu ‘Assim como eu matei seu filho, eu posso muito bem te matar, porque eu matei um filho de bandido’; imediatamente, ele falou com outros policiais ‘Vamos colocar logo uma arma na mão da criança e o incriminar logo – e tirar o nosso da reta’, e eu respondi ‘Se vocês colocarem arma no meu filho, se ela tiver bala, eu te mato; e, se não tiver, eu jogo na sua cara. Bota pra você ver’. Aí eu me agarrei com o policial, o amigo do meu filho tentou me tirar de cima dele – porque, naquela hora, eu não me senti uma pessoa humana: eu me senti uma onça defendendo a minha cria –, e eu quero dizer que esse policial tentou incriminar meu filho de vários jeitos: ele colocou uma foto na internet de outro garoto dizendo que era meu filho que tava com fuzil na mão; depois, disse que meu filho era filho de bandido, que o tinha matado porque era filho de bandido. Meu filho não era filho de bandido. E aí ele falou também que meu filho estava com uma pistola na mão – meu filho estava com celular dele na mão”.
Não fosse a coragem dos vizinhos de Terezinha que filmaram a ação policial e o corpo do menino, além de terem acionado o Coletivo Papo Reto, muito provavelmente o caso entraria para as estatísticas como “mais um traficante morto”. O caso ganhou exposição na mídia, muitos protestos foram realizados, o que levou a Polícia Civil a investigar o caso, realizando, pela primeira vez no Complexo do Alemão, uma reconstituição de crime. Tive a oportunidade de acompanhar essa reconstituição. Foi um dia muito pesado. Colei bem cedo com os amigos do Coletivo Papo Reto e da Nova Democracia. Nós conseguimos entrevistar os pais do Eduardo, que não dispensaram críticas à PM, ao Governador e ao JJ, do AfroReggae. Logo em seguida, chegou a CORE, escoltando o delegado Rivaldo Barbosa e os peritos da DH que nos removeram de lá. Atrás deles, a PM fazia um cordão de isolamento; atrás desse, um batalhão de equipes se acotovelava para conseguir “aquela imagem”. Nesse dia, o meu colega Raull Santiago, que já havia apresentado a série de documentários Rolezão para a GloboNews, entrou ao vivo pela primeira vez na emissora, conseguindo, com sua dialética invejável, levar a voz do morador da favela pro debate que rolava no estúdio.
Lembro que a realização dessa reconstituição foi celebrada pelos moradores como algo que finalmente pudesse trazer justiça, ao menos uma vez, à comunidade, desmascarando esta farsa que é a tal Polícia de Proximidade e Pacificação que dizem ser a UPP. Sete meses depois, veio a dantesca conclusão da investigação da delegacia de homicídios: o policial teria agido em legitima defesa, disparando contra supostos traficantes que estariam no final da rua e atingindo Eduardo por acidente. Em depoimento à CPI do Assassinato de Jovens, poucos dias depois da conclusão do inquérito, a mãe de Eduardo estava perplexa: “Meu filho saiu de dentro do quarto pra morrer na porta da minha sala, porque o cérebro do meu filho ficou espalhado na varanda, dentro da sala e grudado na parede da sala. Eu continuo dizendo: eu quero uma nova investigação e não aceito que ela seja feita pelo Dr. Rivaldo Barbosa. Isso não vai ficar impune, eu não vou deixar. O Estado disse que tinha feito tudo por mim, mas ele não fez nada. Ele está me devendo, me devendo uma investigação”.
O inquérito afirma que os policiais estavam a cinco metros do menino, embora não o tenham visto. O Ministério Público, no entanto, não aceitou a tese da legítima defesa e denunciou o PM autor do disparo por homicídio doloso. Segundo o MP, o inquérito tem várias contradições e o caso deve ser levado a júri popular.
A Pacificação em Outras Comunidades
A continuidade da violência em áreas de UPP não ocorre apenas no Alemão. Segundo o relatório “Você matou meu filho“, da Anistia Internacional, a implementação das UPPs “contribuiu para a redução de determinados índices de criminalidade em áreas específicas da cidade (…) apesar desses avanços, ainda há inúmeras denúncias de abusos por parte dos policiais militares dessas unidades, incluindo uso desnecessário e excessivo da força e execuções extrajudiciais”. Exemplos para corroborar essa afirmação não faltam: podemos citar o desaparecimento do pedreiro Amarildo em 2013, crime pelo qual mais de 20 PMs, incluindo o ex-comandante da UPP da Rocinha, respondem. O relatório da AI destaca a prática de alteração da cena do crime, plantando armas nos corpos, por exemplo, como uma tentativa de justificar as execuções. Poucos meses após o lançamento do relatório, imagens feitas por moradores do Morro da Providência, no centro do Rio, mostraram policiais da UPP colocando uma arma na mão de um jovem que eles tinham acabado de matar e atirando para o alto.
No início de novembro, fui a uma audiência pública da CPI do Assassinato de Jovens do Senado, evento realizado na sede da OAB-RJ com a presença de várias mães de vítimas de execuções policiais, a maioria moradora de áreas de UPP. Presidida pela senadora Lídice da Mata e com relatoria do senador Lindbergh Farias, a CPI contou também com a presença de policiais e do Subsecretário de Educação, Valorização e Prevenção da Secretaria de Estado de Segurança do Estado do Rio de Janeiro. O subsecretário exibiu uma apresentação mostrando os números de fuzis e granadas aprendidos desde 2014, além de várias fotos coletadas da internet de menores empunhando armas. As imagens causaram revolta na plateia, que o vaiou sumariamente.
Entretanto, teve um par de canas decentes falando, como o Delegado Orlando Zaccone. Ele frisou: “Só vamos acabar com o tráfico legalizando a produção das drogas. A legalização das drogas pode salvar vidas. A proibição é o vetor do extermínio da juventude negra”. Para sua tese de doutorado na UFF, Orlando fez uma extensa pesquisa sobre os autos de resistência no Estado. Ele descobriu que, em 2005, por exemplo, 99% dos autos de resistência foram arquivados como legítima defesa. “A violência do Estado não é um desvio de conduta – é uma política de estado de extermínio. Logo, individualizar a culpa no policial que comete a violência não deveria ser a solução. Deveríamos buscar soluções políticas.”
O Coronel Ibis Pereira, da PMERJ, abriu sua fala com números da violência do Brasil coletados no Fórum Brasileiro de Segurança, que aconteceu neste ano no Rio de Janeiro. “A polícia brasileira mata uma pessoa a cada três horas, morre um policial por dia no Brasil. O número de brasileiros mortos em 2014 é maior do que o número de soldados americanos mortos em toda a guerra do Vietnã.” Para ilustrar a cultura de abusos de autoridades brasileiras, o coronel lembrou que a primeira Constituição que o Brasil teve, a de 1824, proibia a pena de açoite; no entanto, isso nunca impediu algum senhor de engenho de açoitar seus negros, basta ver as gravuras do Debret. “Olha que coisa curiosa: a gente tem a capacidade impressionante de fazer diagnósticos precisos. Nós positivamos as soluções: boa parte das soluções desse problema já está escrita, já são leis que a gente simplesmente não cumpre. Parte das respostas que esta CPI busca já está lá no Estatuto da Juventude. Ele é uma receita para políticas públicas de juventude neste país, que a gente não tem. Então, o que está faltando? É política e vontade. (…) Não vai adiantar nada desmilitarizar a polícia se não desmilitarizarmos o sistema de justiça criminal e as políticas de segurança – ou o que a gente chama de política de segurança –, senão a gente não vai sair do lugar.”
Os depoimentos dos policiais, de outros “especialistas” e ongueiros eram revezados por testemunhos de mães que perderam seus filhos. Todos muito emocionados e com muitos pontos em comum, como o racismo e a perseguição sofridos por esses jovens pela polícia, além da impunidade e de uma espécie de “morte lenta” vivida por todas essas mães. “O Estado, além de ele produzir vítimas, ele produz mulheres zumbis, porque perdem noites de sono, tomam antidepressivos; mulheres novas, que podem estar ainda produzindo, que ficam incapazes de trabalhar para produzir o seu sustento. Então, queremos justiça e reparação de todas as formas, tanto a financeira quanto a psicossocial. Mas eu não quero só a justiça do policial que matou, que foi um policial civil – eu quero a justiça do Estado. E quero a justiça do país, porque eu não pari filho para ser assassinado”, conta Mônica Cunha, que teve seu filho, um menor infrator, executado em 2006 enquanto estava de joelhos e com as mãos para o alto na região das favelas do Rato Molhado e do Jacarezinho.
Irone Santiago fez um dos depoimentos mais revoltados. Seu filho saiu de casa, no Complexo da Maré, pra ver o jogo do Flamengo e teve seu carro fuzilado pelo Exército Brasileiro. Ele não faleceu, porém se encontra paralisado e requer cuidados especiais. “Eu agradeço a Deus por meu filho estar vivo, mas eu espero uma justiça, porque ele está lá em cima de uma cama, cheio de necessidades, e eu não tenho de onde tirar.” O caso de Irone foi um de uma série de arbitrariedades cometidas pelo Exército Brasileiro no início do ano, casos que motivaram um dos protestos mais intensos que eu já cobri. “Eu não vejo ninguém falando da atuação do Exército, e ela é péssima. Não havia a necessidade de ter tanques andando dentro do Complexo da Maré. Eu não moro no Iraque. Alguém perguntou se nós queríamos pacificação? Ninguém veio me perguntar se eu queria pacificação. Se você é da polícia militar, se você é soldado, você escolheu sua profissão. ‘Ah! O soldado que levou um tiro e morreu’, ‘Ah! O meu marido era policial’: eu não tenho culpa, eles escolheram a profissão. O meu filho não escolheu levar tiro, meu filho só escolheu assistir a um jogo de futebol. Disseram que o Exército estava lá pra nos proteger. Nos proteger de quê? Eu moro no Complexo da Maré há 47 anos e eu nunca nem tranquei minha porta pra dormir, porque eu nunca tive minha casa invadida por bandidos ou por ninguém; agora, com eles lá, a casa é invadida toda hora.”
Maria de Fátima, a Fatinha, mora na favela da Rocinha há 50 anos e nunca teve problema com ninguém. No dia 17 de abril de 2012, às 4h20 da tarde, ela passava a camisa do seu marido quando escutou dois tiros. Era a PM assassinando seu filho que, embora não tivesse envolvimento com o crime, era usuário de maconha. “Meu filho foi assassinado de joelhos, na frente de uma creche, e ainda perguntou quando levou o primeiro tiro ‘Por que estão fazendo isso comigo?’ Nem ele mesmo sabia por que [é] que ia morrer. Entenderam? Que justiça é essa? Eles matam um filho nosso, um negro nosso, e acaba com a nossa família, acaba com nossa vida. Nós somos seres humanos como os filhinhos de papai que ficam na porta da favela fumando e cheirando droga, mas eles podem porque são jovens da classe média. Eles podem tudo, mas a gente, não. Nós não temos o nosso direito de viver. Se meu filho fosse bandido, tudo bem; levasse ele preso, mas não matasse, porque, se eu que sou mãe, se eu pegar um filho meu, acorrentar, queimar de ferro, pra punir, o que acontece comigo? Eu não vou para trás das grades? E por que quem tirou a vida dele, que nunca fez nada, nunca deu um arroz ou um lápis pra ele ir pra escola, tem o direito de chegar, dar dois tiros e pronto?”
As histórias dessas e de muitas outras mães reforçam a afirmação de muitos entrevistados de que o projeto da UPP não consegue barrar o avanço da criminalidade. Como nos explicou Marquinhos da Pepé, o que acontece, em muitos casos, é o contrário: a política de pacificação resume-se em abrir caminho para a instauração de organizações criminosas integradas por policiais, as tais das milícias. Cinco anos após a ocupação do Alemão, tiroteios e mortes são constantes, assim como em outras favelas contempladas pelo programa.
Recentemente, o maior enaltecedor das UPPs, o Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, declarou, em entrevista à Época, que admira o modelo de políticas de drogas de Portugal, onde o assunto é tratado dentro da esfera da saúde, e não da policial. “No Brasil, não pode passar deste governo a descriminalização do uso. A guerra à droga é perdida, irracional. Podemos começar pela maconha.” Opinião semelhante é compartilhada pelo coronel Robson Rodrigues, chefe do Estado-Maior da PMERJ, o segundo homem no comando. Em entrevista concedida mais ou menos na mesma época que a de Beltrame ao Jornal Extra, Rodrigues afirmou: “A política de combate às drogas, que gerou o proibicionismo, fracassou. O pretexto da guerra era o de que ela iria acabar com o tráfico, diminuir o consumo e a violência. Aconteceu o contrário. Hoje, muitos estados norte-americanos legalizaram o consumo. Nós continuamos aí. O que consome nossas energias é isso. Se acabasse, talvez sobrasse mais tempo para que combatêssemos o grande traficante de armas e de drogas, os grupos de extermínio… a PM foi convidada para uma dança e ficou dançando sozinha, com uma venda nos olhos. Quem convidou para dançar já saiu há muito tempo”.
Com duas pessoas na alta cúpula da Segurança Pública do Estado defendendo uma mudança na política de drogas, ainda que sem admitir o fracasso das UPPs, isso pode ser tão confortante quanto desesperador. Fica a dúvida se eles realmente querem ou se sequer podem mudar esse modelo, ainda mais às vésperas das Olimpíadas, a principal desculpa recente para esse sangrento capítulo da nossa história.
Esta reportagem foi originalmente publicada na VICE Brasil em 30/11/2015 e posteriormente contemplada com o V Prêmio Latino-americano Sobre Drogas oferecido pela CONFEDROGAS 2016.