Endola ou Dola? Do carimbo ao adesivo, a arte de mutuca das bocas cariocas
As embalagens de drogas (maconha, cocaína e crack) confeccionadas pelos traficantes cariocas do CV, TCP e ADA trazem ícones da cultura pop como Bob Marley, Pato Donald e Filipe Ret.
O que os paulistanos conhecem como paranga, no Rio de Janeiro é conhecido como mutuca, dola, ou dolinha para os íntimos. A origem destes últimos nomes vem do inicio da época do Plano Real, nos anos 1990, quando o valor do real se equiparava ao dólar. Traficantes faziam mutucas de maconha um real, que começaram a ser chamadas de “dóla”, provavelmente por algum traficante de língua presa, e o termo pegou.
A dola também gerou o verbo “endolar” e sua flexão “endolação” que significa o ato de embalar drogas. A função de alta responsabilidade é realizada a portas fechadas, aonde membros da facção em questão pegam os pesos de maconha ou cocaína trazidos à favela pelos matutos, a fragmentam em porções de diferentes tamanhos, as identificam e separam em cargas. Um Funk proibido clássico do Cidinho e Doca cantava lá nos anos noventa que “no pique da endola é que a chapa esquenta, quem tá dentro não sai, e quem tá fora não entra.”
Enquanto a proibição força traficantes mundo a fora a investirem em negociações discretas e muitas vezes indiretas, no Rio de Janeiro as drogas são escancaradamente produtizadas, trazendo estampadas o valor, a sigla da facção, slogans e eventuais homenagens a personagens da cultura pop que podem fazer alusão ao vulgo de algum membro importante da facção.


Fotos: Reprodução Internet
Nos estados norteamericanos e outros países aonde a maconha é regulamentada é possível ter um controle confiável da procedência da erva, que podem definir desde a cêpa em questão até detalhes minuciosos como os níveis de canabinóides. Aqui no Brasil a coisa é bem diferente. O Paraguai ainda é o maior provedor de maconha do país, e estes não estão muito preocupados em separar os machos das fêmeas (que é tipo a aula número um do bom cultivo de canábis), quanto mais identificar as cepas utilizadas. No Rio, fica a critério e criatividade do varejista batizar a erva comercializada, com nomes como “boldinho”, “hidropônico”, e muitos outros.

Foto: Reprodução Internet

Foto: Reprodução Policia Civil – RJ
No Rio de Janeiro, além do preço e esses nomes curiosos costumamos ver o nome da favela e da facção local e toda uma sorte de desenhos como a logomarca das Olímpiadas do Rio2014 que aparece nestas dolas cuja fotos circularam muito na net (e na imprensa). Esta semana uma paranga de cocaína apreendida na Lapa (porém oriunda da favela Cinco Bocas, em Braz e Pina, zona norte do Rio de Janeir0) traz uma mensagem de compromisso social e esforço em redução de danos – “use longe das crianças.”

Foto: Matias Maxx
Eu sempre fui fascinado nos desenhos e frases de efeito dessas “endolas”, e como bom acumulador sempre juntei alguns papelzinhos, no entanto acabei perdendo a maioria deles, então para fazer esta matéria procurei meu amigo Mouchoque, DJ, MC, pichador e produtor da festa Cl∆ps. Ele tem há muito tempo uma bela coleção dessas endolas, que inclusive foram parar no encarte do seu CD “Eu Odeio a Barra” lançado em 2007. Assim como eu, Mou lamenta de ter perdido boa parte dessa coleção nessas faxinas da vida, e na sessão de fotos lembrou várias das histórias por trás de cada papelzinho daqueles, muitas dessas histórias que hoje podem soar divertidas, mas que no dia foram um perrengue fudido, como diz meu amigo o cartunista Daniel Juca – “a vida (de usuário) é dura”.

As primeiras embalagens de maconha que eu conheci, lá nos anos noventa, consistiam num pedacinho de papel (geralmente verde, rosa ou amarelo) carimbado. Notava-se sempre o objetivo de produtizar mesmo a droga, logo o preço e o nome da boca não podiam faltar, assim como as iniciais da facção, frases de feito e as vezes desenhos simples como a topografia do morro ou fuzis Ak47.

Quando a inclusão digital chegou nas bocas os carimbos passaram a ser substituídos por impressões caseiras, o que expandiu os limites das artes de endolações. Vejam aqui uma variedade de maconhas erroneamente batizadas de “hidropônicas”.

Programas e personagens de TV frequentemente batizam os produtos vendidos nas boca de fumo cariocas. Quem aqui lembra do Seu Craysson?

Estas endolas mostram supostas nacionalidades do Haxixe. Fontes nos asseguram que na verdade é tudo, literalmente, Paraguaio.

Como se pode ver, os grandes eventos já inspiram essas artes não é de hoje.


Por motivos mais que óbvios, as endolas de pó são mais difíceis de encontrar na Internet, mas elas existem. Se liga só nessas daqui.
Depois de coletar essas belas amostras com meu amigo, percorri vários grupos de facebook e whatsapp de maconheiros e consegui coletar alguns exemplares mais atualizados. Se liguem só!


Foto: Reprodução Internet
Hoje em dia em várias bocas as etiquetas passaram a ser impressas em papel adesivo que é colado nas Dolas.



Foto: Reprodução Internet
Para a felicidade dos maconheiros de um tempo para cá, algumas bocas, passaram a comercializar maconha em forma de flor, não prensada, provavelmente oriunda da Colombia ou daqui do Brasil mesmo. O que importa é que essa erva tem aparência e qualidade muito superior ao prensado Paraguaio. Esses fumos são genericamente chamados de SKANK, em referencia ao Skunk#1, a primeira cepa de canábis hibrida a ter sua semente comercializada em massa, isso em 1978. Ainda que hoje existam centenas de variedade de cepas canábicas, o termo “Skunk” ainda é muito utilizado por leigos para batizar qualquer erva boa.

Foto: Reprodução Internet
Não por acaso, Samuel Rosa, o vocalista da banda mineira Skank, foi homenageado numa das endolações mais famosas da internet. O que chama atenção é o sincretismo Pop que reúne o símbolo do Batman (geralmente associado à milícias o que não deve ser o caso uma vez que há uma facção identificada também), o escudo do Flamengo e a lata de um famoso energético. Nos fóruns e comentários de internet, canabinólogos e canabilês que provaram o tal fumo, afirmam que ele “está mais pra Jota Quest!”.


Outra celebridade que caiu no gosto dos endoladores é o rapper Felipe Ret. Que além de estampar uma maconha de R$5 também aparece em garrafinhas de lança-perfume. Questionado sobre o que achava desse viéis de garoto propaganda involuntário Ret me disse que sua intenção nunca foi estimular ninguém a usar drogas.

Como não podiam faltar jogadores de futebol também costumam ser lembrados, nas dolas de Crack, claro, sacou o trocadalho? Nesta apreensão os homenageados foram o Jobson e o Adriano Imperador, porque será?

Foto: Reprodução Policia Rodoviária Federal
O que Anderson Silva, Maradona e Neymar tem em comum? Todos emprestaram involuntariamente sua notoriedade para publicidades de cocaína.



Foto: Reprodução InternetDe todas as celebridades retratadas nas dolas o mais popular é definitivamente o rei do reggae, Bob Marley.

Foto: Reprodução Internet
Será que alguém já foi na boca reclamar de violação!? Será???

Foto: Reprodução Internet
E já que o gancho foram os grandes eventos como não esquecer do Carnaval carioca. Embalado com a logomarca de uma emissora de TV para o “maior show da terra” este porradão de 200 dá pra começar os trabalhos na semana do Rei Momo.


Foto: Reprodução Internet
Obviamente as bocas também prestigiam as escolas de samba da área como a Viradouro e a Mangueira (que traz novamente nosso querido Filipe Ret).
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Foto: Reprodução Internet

O Fuleco, mascote da Copa do Mundo de 2014, também teve seus minutos de fama envolto em rolo-filme.

Foto: Reprodução Internet
Essa daqui é a arte mais genial com qual trombei na minha pesquisa e dispensa comentários.

Foto: Reprodução Internet
Este Pato Donald gloriosamente Botafoguense também foi foda!

Foto: Reprodução Internet
Essa daqui além de ter uma arte foda com o Mike Tyson acompanha uma seda “unbleached”, e a aparência não tá tão ruim dentro dos padrões boca de fumo. Infelizmente não descobri de onde é. Um dado curioso é que a maconha que chegou as praias dentro das latas durante o épico “Verão da Lata” foi rápidamente apelidada pelos maconheiros da época de “Mike Tyson”, por conta de sua pancada.

Foto: Reprodução PMERJ

Foto: Reprodução Internet
Fiquei curioso em saber qual é dessa Lan House, será que a boca fica em frente, para facilitar aos vapores jogarem CS na troca de plantão?

Foto: Reprodução Internet
É tanta referencia pop que nem dá pra perceber que o sujeito com as AKs47 é o Ogro Shreck.

Foto: Reprodução Internet
Outro personagem verdão recorrente nas embalagens de maconha é o Hulk, claro!

Foto: Reprodução Internet
O Popeye, aquele que gosta do verde da lata, foi o garoto propaganda escolhido pela rapaziada do Morro do Antares.
Dola de maconha de R$20 da Nova Holanda com o slogan “Fé em Deus”.
Dola de maconha de R$100.
Foto: Reprodução Internet
“O Certo Prevalece” e “Fé em Deus” são algumas das mensagens positivas que acompanham as dolas em geral.


Foto: Reprodução Internet
O pessoal da boca está ficando criativo também nos cortes. Se liga nestas impressionantes mutucas de R$50. Reza a lenda que fatiadores de frios e guilhotinas de gráfica são utilizadas na nobre missão de separar os cortes.

Foto: Reprodução Internet
E se a boca fica muito longe e/ou você não quer ficar entrando e saindo da favela o tempo todo a solução é recorrer ao porradão de R$500, sem miséria!

Foto: Reprodução Internet
Não consegui atestar a veracidade desta última, apenas seu extremo mau gosto.
Os desenhos e frases de efeito, ora macabros ora divertidos mostram um lado lúdico da vida do crime. Mas a verdade é que nesse ramo de atividades que é o varejo do narcotráfico demissão é morte e aposentadoria é cadeia ou cadeira (de rodas).
Para tentar reverter esse quadro e pedir uma mudança imediata na politica de drogas várias cidades do Brasil realizam anualmente a Marcha da Maconha. Enquanto a mudança não chega, para fugir da maconha paraguaia e seu ciclo de violência, a saída segundo especialistas é seguir o lema – Não compre plante!
Esta é a versão atualizada de uma reportagem publicada originalmente em 28/07/2016 na VICE Brasil.
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